terça-feira, 15 de julho de 2014

Michael Jackson, Fenômeno da Música Pop (Estadão, Julho 1984)

O Estado de São Paulo, 15 de julho de 1984
Por Marco Antonio de Lacerda
Especial para o O Estado

SÃO FRANCISCO - Para a indústria do rock, encalhada na fronteira onde as ruínas do punk se chocam com a parafernália dos sintetizadores pop, o surgimento de Michael Jackson é uma espécie de milagre. Com 35 milhões de cópias vendidas em todo o mundo, Thriller, o segundo LP individual do cantor, não é apenas o maior recorde de vendas da indústria fonográfica. Thriller é algo que nem mesmo os melhores especialistas em marketing conseguem explicar. Um ano e meio depois de ser lançado, o disco continua a ser vendido numa média de um milhão de cópias por semana em todo o mundo.

E quando Michael Jackson pisar, hoje à noite, no palco da cidade de Irving, no Texas, na segunda escala do show Victory, milhares de pessoas assistirão ao espetáculo, que já é apontado como o mais grandioso da história do rock. Mais do que isso, elas terão a oportunidade de ver de perto a mágica e os ingredientes que contam na alquimia da formação de um mito. Embora o show conte com a participação dos outros quatro integrantes do "Jackson Five" (Jermaine, Tito, Randy e Marlon), todas as atenções se concentram, do começo ao fim do espetáculo, na fascinante presença cênica de Michael.

A dança de Michael Jackson mistura a verve de James Brown com a sensualidade de Diana Ross e o charme de Carlitos. A plateia aplaude, grita, contorcendo-se em êxtase diante da graça de um brilhante entertainer. Quando canta She's Out of My Life, ele é capaz de dar a uma canção melodramática o tom de uma paixão séria. Quando interpreta Billie Jean, a plateia se delicia com a cadência precisa de seus movimentos no palco. Em duas horas de espetáculo, Jackson percorre o território das baladas (Human Nature), do rock pesado (Beat It) e até das salsas picantes (Lovely One), sempre com a desenvoltura de um perfeito showman.

Michael Jackson é o maior fenômeno da música pop desde Elvis Presley e os Beatles. Sem dúvida, ele é também o mais popular cantor negro de todos os tempos, que devolveu a música de sua raça - o rhythm and blues - ao topo das paradas de sucesso, de onde tinha sido banida no começo dos anos 70. Jane Fonda, amiga e professora de arte dramática do cantor, explica a razão de tamanho apelo popular:

- A música de Michael é enérgica e sensual. Enquanto se escuta, pode-se dançar, cozinhar e até fazer amor. É impossível ficar quieto quando Michael toca no rádio.

Thriler pode ser um disco provocante e vigoroso, mas está longe de representar, no contexto mais amplo da música pop, o papel que um dia tiveram obras como Sargeant Pepper's Lonely Hearts Club Band (Beatles), Who's Next (Who) ou Born To Run (Bruce Springsteen). Estes são talismãs do rock, discos que mudaram vidas. Thriller tem apenas a mesma qualidade das roupas do gênero "esporte elegante": depois que a moda passa, a gente se sente meio embaraçado de ter gostado tanto.

Na Inglaterra, hoje, o rock explode em eventos esparsos, mas sem nenhum foco ou liderança como o triunvirato Beatles-Rolling Stones-Who, que reinou nos anos 60 com apoio popular incondicional. Nos Estados Unidos existe Michael Jackson, mas sem nenhum movimento de base sustentando o seu estridente solo individual. Ao contrário dos medalhões da música pop dos anos 60, Jackson tem uma vasta audiência, mas um pequeno público eleitoral. Ele é um mundo à parte no atual contexto do rock, um fenômeno que sobrevive na vida real da mesma maneira como detonou: em isolamento.

Faz mais de um ano que Michael Jackson não dá entrevistas. Antes, as poucas vezes em que ele concordou em falar com repórteres foram situações tão difíceis que seus empresários decidiram poupá-lo - e também a imprensa - de tamanho constrangimento. A dificuldade vem da timidez que Jackson, a essa altura já tão popular quanto o disco Thriller. Segundo repórteres das revistas Time e Newsweek, que estiveram na companhia do cantor durante duas ou três horas, a timidez de Michael Jackson não é do tipo comum, que impediria um rapaz de se comunicar com uma moça bonita. Trata-se de um caso patológico de timidez paralisadora, que muitas vezes torna impossível qualquer contato com outro ser humano. Por isso, os poucos contatos pessoais de Michael Jackson são planejados com a cautela de uma manobra militar. Quando certos cuidados e medidas deixar de ser tomados, o resultado pode ser desastroso. Quando visitou o presidente Ronald Reagan, na Casa Branca, em maio, Michael Jackson foi acometido de uma crise súbita de paranóia que o levou a se trancar no banheiro por meia hora, para evitar a multidão de estranhos e curiosos.

Quando não está no palco ou nos estúdios, Jackson certamente se encontra trancado atrás das grades de sua mansão na pequena cidade de Encino, na Califórnia, onde vive na companhia dos pais. Recentemente supervisionou a reforma da casa e o resultado é uma mistura de Disneylândia com a Xanadu do filme Cidadão Kane. O interior é decorado por jogos eletrônicos, manequins de gesso e estátuas de vários estilos, enquanto nos jardins se encontram aves e animais de diversas procedências, entre eles uma lhama e uma jibóia. Michael Jackson dispõe de uma completa coleção de desenhos animados, aos quais ele assiste regularmente. Segundo os amigos, Jackson pode passar várias horas perdido no mundo fantástico do Pato Donald, Mickey, Jumbo e outros personagens de Walt Disney. Em diferentes ocasiões ele revelou que um de seus sonhos é fazer Peter Pan no cinema.

Segundo o cineasta Steven Spielberg, "se E.T. não tivesse aterrissado na casa de uma família de classe média dos EUA, provavelmente teria baixado na mansão de Michael Jackson!" Ele fez a narração, em disco, de "E.T.", e acabou-se tornando amigo íntimo de Spielberg. "Jackson é o último inocente vivo neste planeta," diz o cineasta.

Michael Jackson é vegetariano e, como membro da seita Testemunhas de Jeová, acredita num holocausto que arrasará o mundo, seguido pela segunda vinda de Cristo. A religião ocupa grande espaço na vida do cantor, envolvendo leituras intensivas da Bíblia e três visitas semanais a um templo nos arredores de Encino. Diana Ross, a amiga mais íntima, diz que o "apelo universal de Michael tem mais a ver com o personagem que ele representa do que com sua música."

De fato, Michael Jackson é um produto do show-business norte-americano. Ele passou toda a infância e a vida adulta nos palcos e bastidores do mundo do espetáculo. O jardim da infância frequentado por Jackson, quando menino, foi o porão do Teatro Apollo, no Harlem, bairro negro de Nova York. Na época, o Jackson Five já fazia a abertura dos shows de artistas famosos, como Jackie Wilson, James Brown, Temptations e Etta James. Aos seis anos, Michael Jackson era muito tímido para se aproximar dos monstros sagrados da música negra da época. Em vez disso, ele se escondia atrás das cortinas, nos bastidores do Apollo, e devorava com os olhos da performance de seus ídolos, principalmente as eletrizantes apresentações de James Brown.

Aos 25 anos - e 20 de carreira -, Michael Jackson nunca conheceu outra vida além do show-business. Os grandes sucessos musicais do Jackson Five, muitos deles gravados há 15 anos, hoje são clássicos do rock. Seus ídolos de infância se tornaram colegas de profissão. Aos 10 anos, mudou-se para o apartamento de Diana Ross, em Hollywood. Hoje ele é um dos produtores da cantora. Michael Jackson tinha cinco anos quando os Beatles explodiram no mundo. Hoje, Paul McCartney participa de seus discos como convidado especial.

Nas poucas vezes em que é visto em público, Jackson está sempre acompanhado de atrizes famosas, como Tatum O' Neal ou Brooke Shields. Ele conversa durante horas, por telefone, com Liza Minnelli e faz suas confidências mais íntimas ao veterano Fred Astaire. A atriz Katharine Hepburn, tradicionalmente aversa a estrelas do rock, abriu uma única exceção para Michael Jackson e foi à estreia do cantor no Madison Square Garden, em 1981.

O mundo de sonhos de Michael Jackson está em construção há 25 anos. Tudo começou na pequena cidade de Gary, em Indiana, no dia em que a única televisão da casa da família Jackson parou de funcionar. A única saída do metalúrgico Joseph Jackson, na época sem condições financeiras para comprar uma nova TV, foi ligar o rádio. Desde então, a família Jackson nunca mais parou de dançar.

Não muito depois, lembra Joseph Jackson, hoje empresário dos filhos famosos, Michael confessaria a uma de suas professoras que o sonho de sua vida era se tornar um entertainer rico e famoso. O que ele não podia antever, porém, eram as consequências de sua determinação. A dimensão de sua fama e riqueza tornou-se pública no começo deste ano, quando a CBS recebeu 1.500 convidados no Metropolitan Museum de Nova York para uma festa (avaliada em 1,5 milhão de dólares), em que foi anunciado um novo recorde da história moderna: o disco Thriller, batendo o seu antecessor, Saturday Night Fever (com 25 milhões de cópias vendidas), era o maior recorde fonográfico de todos os tempos. Michael Jackson entrou para o Guinness Book of World Records.

O sucesso de Thriller, porém, não é o único recorde de Michael Jackson. Recentemente ele bateu, também, o cantor Paul Simon, ao arrebatar oito troféus Grammy de música. Jackson foi apontado ainda como o melhor artista e melhor vocalista em 28 países do mundo, da Grécia à Holanda.

Apesar de tímido nos encontros com a imprensa, a reputação profissional de Michael Jackson é a de um perfeccionista. Quando se trata da contratação de um novo empresário, músico ou promotor de shows, ele atua como o mais meticuloso dos repórteres, fazendo detalhada investigação e pedindo conselho aos irmãos e outros profissionais do ramo. Embora acredite piamente que o talento que lhe foi atribuído por Deus, Jackson sabe muito bem o preço desse talento no mercado. A fortuna pessoal do cantor é avaliada hoje em cem milhões de dólares, parte dos quais proveniente dos dois dólares que ele recebe por cada cópia do disco Thriller vendida pelo mundo afora.

Mas, como tudo na vida, a fama também tem seu preço. Desde o dia em que Elvis Presley apareceu em público sacudindo as cadeiras, tornou-se hábito na imprensa mundial questionar a virilidade dos ídolos. Nunca, antes, se atribuiu tanta importância a essa questão como no caso de Michael Jackson. Diariamente aparece na imprensa norte-americana pelo menos uma nova revelação sobre a vida íntima do cantor: "Michael toma hormônios para manter a voz feminina." Ou acusações menos diretas: "Virilidade de Michael preocupa a família." A última revelação foi publicada no ano passado, pelo jornal Rolling Stones, fazendo insinuações diretas sobre a homossexualidade do artista.

Mas nada disso parece afetar o prestígio de Michael Jackson. O presidente Reagan exalta-o como modelo para a juventude norte-americana, enquanto prefeitos e governadores de todas as partes dos EUA suplicam à família Jackson que inclua suas cidades no roteiro de Victory.

Há algo, porém, no fenômeno Michael Jackson que é completamente inédito na história da música pop. No passado, ídolos como Elvis Presley ou os Beatles eram capazes de levar a juventude a novos horizontes de descobertas, experiências e sonhos. Nunca se teve notícia, entretanto, de um ídolo das proporções de Jackson que fosse tão completamente definido pelo medo e pela fuga. O medo e a fuga estão na letra de suas melhores canções. Billie Jean é a história de um homem fugindo de uma mulher que o aculsa falsamente de tê-la engravidado. O medo e a fuga estão também nos vídeo-clips em que Michael escapa das garras de detetives sinistros usando o simples truque de desaparecer no ar. E então finalmente na cumplicidade do cantor ao vender a sua arte para o mais barato fim comercial. Billie Jean certamente revela alguma coisa sobre os pesadelos secretos de Michael Jackson, dizia na semana passada a revista Newsweek. Mas ao usar a canção como locomotiva de vendas da Pepsi Cola, Jackson a destituiu de qualquer sentido, transformando-a num mero jingle de TV.

Máquina e efeitos por trás da excursão

IRVING, TEXAS - Sexta-feira, Michael Jackson e seus quatro irmãos fizeram a primeira das três apresentações programadas para a cidade de Irving, Texas, segunda etapa da excursão do cantor pelos Estados Unidos, que começou esta semana em Kansas City, Missouri. Mais uma vez, o novo ídolo norte-americano do rock mobilizou uma plateia de 45 mil pessoas, foi aplaudido e ovacionado por um público de jovens e adultos tão entusiasmados quanto aqueles que assistiram aos concertos de estreia da turnê. Para a série de três espetáculos, que prosseguiu no sábado e se encerra hoje, 107 mil ingressos foram vendidos. Victory, título do mais recente LP de Jackson, que já vendeu dois milhões de cópias, resgata, depois de muitos anos, o antigo grupo Jackson Five, Michael e seus quatro irmãos. Entre as 17 canções que interpretam uma parte delas é do tempo em que gravavam juntos, como I'll Be There, mas a grande estrela, apesar dos esforços, continua sendo ele.

Os três concertos em Kansas City atraíram 135 mil espectadores e renderam mais de 26 milhões de dólares. Uma semana antes da estreia começaram a chegar os 375 toneladas de equipamentos, trajes e aparelhagem para os efeitos especiais. Primeira escala da excursão por 13 cidades norte-americanas, serviu ao grupo para provar o impacto de seu espetáculo, apesar de parte da crítica ter acusado Jackson de não incluir no repertório nenhuma faixa de seu LP Thriller. Outros reclamaram do preço dos ingressos, 30 dólares por pessoa, muito caro para shows em estádios. Cada apresentação, de montagens sofisticadíssimas, inclui grandes efeitos cênicos, com palco de vários pisos, e especiais que utilizam até o laser. São tantos os equipamentos que faltaram caminhões para transportá-los de Kansas City até Irving, no Texas.

A excursão toda deverá render entre 80 a 100 milhões de dólares - Michael já disse que doará sua parte à instituições de caridade. Mas Victory, até novembro, estará movimentando muito mais do que isso. Russel Cline, promotor dos concertos em Kansas City, informou que os valores gerados a cada hora de atuação de Jackson foram de cerca de um milhão de dólares, entre a comercialização de ingressos, recordações e estacionamento. Um funcionário público da cidade, A. J. Wilson, acrescentou que Kansas City recebeu até 20 milhões de dólares com alojamentos, alimentação e outros tipos de serviços.

Ao lado dos irmãos Jermaine, Marlon, Randy e Tito, Michael Jackson entra em cena com seus trajes extravagantes e, como já é seu hábito, ergue a mão enluvada e saúda o público. Na plateia, depois de passar por um rígido sistema de segurança, estão milhares de adolescentes, verdadeiras réplicas de seu ídolo: cabelos molhados de gomalina, jaquetas, óculos escuros, calças pelo tornozelo e a obrigatória luva branca, na mão direita.