domingo, 2 de janeiro de 2011

Michael Jackson Ganha Oito Grammy (Folha de S. Paulo, Março 1984)

Folha de São Paulo, 1º de março de 1984
Por Pepe Escobar

Foi um longo caminho da minúscula Gary, Indiana, ao faustoso Shrine Auditorium, Los Angeles. 25 anos de vida, 20 anos de palco. Peso letal, especialmente para um garotinho negro. Mas afinal ele é jovem, bonito, ligeiramente esbranquiçado, saudável, elegante. Canta com uma facilidade desconcertante, sorri o tempo todo, dança e se movimenta com a agilidade soberana de um bebê felino. O emblema da inocência em uma época de mistificação. Quem resiste ao príncipe Michael?

Anteontem à noite, o príncipe foi sagrado com toda a pompa e circunstância, na 26ª cerimônia de entrega dos prêmios Grammy, à frente de Bob Dylan, Shirley MacLaine, Alice Cooper, Stevie Wonder, Irene Cara, Donna Summer, Sheena Easton, Ray Charles, 6 mil presentes e 40 milhões de telespectadores. Michael foi arrasador. Ganhou oito Grammys - os Oscars da indústria discográfica americana, provocou delírio coletivo e um lucro adicional incalculável para a sua gravadora, a CBS. Um fenômeno.

Este Grammy, aliás, foi inteiro da CBS. Thriller - que já vendeu inalcançáveis 30 milhões de cópias em todo o mundo, além de gerar sete milionários compactos simples - ganhou como melhor LP do ano. Beat It ganhou como disco do ano. Billie Jean como melhor canção de rhythm 'n' blues e Thriller em pop. Também foi produtor do ano, ao lado do mago-padrinho Quincy Jones, e ainda ganhou um prêmio pela sua narração não-musical da trilha-sonora de E.T. Michael, sentado na primeira fila do teatro, ao lado da ninfeta-que-explodiu-como-mulher Brooke Shields, trajando casaco Commodore azul, luva de cetim branco e impecável "wet look" - mesmo depois do incêndio em sua cabeleira, neste mesmo teatro - despertava uivos apaixonados das fãs cada vez que se levantava para receber um troféu, um deles entregue por Julio Iglesias (provavelmente morto de inveja).

Milagre? De jeito nenhum. Thriller, o álbum-veículo para este frenesi transatlântico, é um das maiores invenções da indústria do disco em todos os tempos. Michael e Quincy Jones fizeram a mistura perfeita: baladas lentas, melancólicas, alternadas a faixas dançantes funk. Em Beat It botaram um solo de um guitarrista de heavy metal para conquistar o público branco. Em Thriller, um rap de um dos melhores especialistas do gênero. Em The Girl Is Mine, chamaram Paul McCartney para um duo sobre um triângulo amoroso que no fundo prega a posição indolor da sociedade multiracial sobre o delicado problema da divisão das mulheres. Como é que não poderia dar certo? E este ecletismo dosado na medida e esta moral "positiva" que fizeram o sucesso de Michael. Ele tem de tudo para todos os públicos, gostos, culturas: vibrações das ruas, fantasia, histórias de horror e "l'amour toujours l'amour", distribuído por esta voz andrógina, nem negra nem branca, leve e suave. É uma máquina de identificação ambulante.

Mas o Grammy não foi apenas o príncipe. Sting, o dionisíaco elfo loiro do Police, também enlouqueceu a indústria americana. Every Breath You Take, aquela mortífera elegia melancólica de amor dilacerado, ganhou como melhor canção do ano (e é mesmo) e melhor interpretação de grupo, derrotando a demagógica The Girl Is Mine. Sting ainda ganhou o prêmio de melhor intérprete instrumental de rock por sua participação no filme Brimstone And Treacle (podem esquecer que não passa no Brasil, porque é independente!). David Bowie - oh, vergonha! - não ganhou nada. Mas o oco Flashdance ganhou três prêmios - melhor trilha, melhor composição instrumental e melhor vocal pop feminino, da histérica Irene Cara. Sim, os critérios do Grammy são na linha Oscar, e prevêm barbaridades do gênero.

No Grammy, em geral, só ganha prêmio quem vende milhões de discos. Por isso, não há surpresa na premiação do Culture Club do "darling" da mídia americana Boy George como melhor entre os novos grupos. Pat Benatar como melhor performance de rock feminino em Love is a Battlefield - porque não Siouxsie ou Chrissie Hynde dos Pretenders? - e George Benson como melhor performance pop instrumental em Being With You (francamente, esta é de doer).

Houve, no entanto, boas surpresas.

Chaka Khan, cada vez melhor como só os melhores vinhos sabem envelhecer, finalmente foi reconhecida como deve. Ganhou três prêmios: melhor performance de rhythm 'n' blues feminino, em grupo e melhor arranjo vocal para o sensacional Bebop Medley incluído em seu penúltimo LP. Wynton Marsalis, 22 anos, o novo Miles, o primeiro até hoje indicado para as categorias jazz e clássico simultaneamente, ganhou nas duas: melhor performance de jazz instrumental e melhor solista instrumental clássico. Duran Duran confirmou sua explosão visual nos EUA: os cinco dandys ganharam os dois prêmios de vídeo, tanto em álbum quanto em clip (o eroticíssimo Girls on Film).

Nos clássicos, "Sir" George Solti terminou batendo um recorde: com os quatro Grammys que ganhou este ano, ficou com um total de 23, passando o insuportável Henry Mancini, até hoje detentor de 20 troféus. Para o "Hall da Fama", prêmios concedidos a gravações anteriores à criação dos Grammy, em 58, entrou até um brasileiro: Villa Lobos, por sua ária nº 5 das Bachianas Brasileiras. Frank Sinatra foi premiado por In The Wee Small Hours (1955), Walter Huston por September Song, Woody Herman por Four Brothers e Fats Welles pela sensacional Ain't Misbehavin'. Prêmio não faltou para todo mundo. Mas a noite - e o futuro - é desde misterioso garoto negrobranco.