segunda-feira, 24 de setembro de 2012

A Nova Embalagem de Michael (Folha de S. Paulo, Setembro 1987)

Folha de São Paulo, 2 de setembro de 1987
Por Ana Maria Bahiana

Depois de 5 anos sem gravar LPs, Michael Jackson lança Bad, que chega ao Brasil, vendendo na faixa-título a imagem de um 'homem mau'


Segunda-feira, dia 31 de agosto, as equipes dos noticiários de TV tiveram, enfim, algo diferente para fazer além de reportar o progresso da sobrevivente do desastre da Northwestern, os preparativos para a chegada do papa ou as modorrentas notícias locais. Foram todas para as portas das grandes lojas de discos, esperando que algo sensacional acontecesse, algo como as filas que davam a volta no quarteirão quando, em novembro do ano passado, saiu a caixa de cinco LPs de Bruce Springsteen. Ou algo como os "flashes" de histeria que acompanham Madonna em cada uma de suas aparições públicas. Após quase cinco anos, Michael Jackson, a maior demonstração de força e fonte de lucros da indústria fonográfica planetária, o campeão absoluto de venda de discos (segundo o 'Guiness Book of Records', com relação a um único LP, Thriller) estava lançando Bad, seu novo álbum, que chega hoje ao Brasil.

As equipes foram, esperaram, e nada aconteceu. Nem filas, nem histeria. O LP Bad aterrissou serenamente nas lojas. Quase anticlimático, até, por conta da tonitruante campanha de marketing e promoção ao seu redor. Há mais de um mês, em doses sempre crescentes, rádio e TV de costa a costa dos Estados Unidos dão "flashes" e "spots" regulares com Michael e o novo disco - progressivamente, as ruas e paredes das grandes cidades americanas foram salpicadas de outdoors e cartazes, reproduzindo a capa e as fotos internas do disco - o tom dos comerciais de TV era altissonante e mistificador: "Nada poderá deter esta força, ele tem o poder de mexer com seu corpo e coração."

Aglomerações

Decepcionadas, as equipes de TV entraram nas lojas e entrevistaram lojistas e compradores. E descobriram que podia não haver tumulto, mas Bad, o novo LP de Michael Jackson, estava vendendo bem, e rápido. Os lojistas esperavam, na verdade, um desempenho melhor que o da caixa de Bruce Springsteen (que teve um espantoso pique inicial de vendas, suplantado, na história da fonografia do rock, apenas por Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, para depois encalhar melancolicamente nas prateleiras e ter altos índices de devolução). Os fãs, embora não fizessem filas histéricas nas portas, estavam todos aglomerados lá dentro, esperando pacientemente para passar pelo caixa e, parecendo satisfeitos com seu ídolo e seu disco.

A América suspirou, aliviada: um dos seus mais recentes ícones pop, com suas promessas transraciais, polissexuais e atemporais, o elfo meio branco e meio negro, sensual mas inofensivo, a celebridade mais doméstica e confortável da América ainda estava viva, vigente, efetiva. Cinco anos não eram nada, afinal.

No início da noite, no horário nobre das redes de TV - que vai das cinco da tarde na costa leste às oito da noite na costa oeste - a América sentou-se em vigília diante de seus televisores. A rede CBS estava transmitindo, para mais de cem milhıes de espectadores, um especial de meia hora com Michael Jackson em sua versão 87 (programado somente para a noite de ontem pela Globo, embora a emissora tivesse o especial disponível desde segunda-feira e não tenha levado ao ar "por respeito ao público de 'Viva o Gordo', segundo fontes da emissora).

Como programa de TV, não foi lá essas coisas. A primeira parte - que representava o "input" real da emissora - consistiu numa retrospectiva da carreira de Michael, o popular enche-linguiça (conhecido aqui como "filler") cujo único interesse foi trazer material de arquivo como, por exemplo, o filme (doméstico, preto e branco) do teste que Michael e seus irmãos fizeram para a gravadora Motown, em 1968. Nenhuma entrevista, nenhum "insight" do novo disco, no novo vídeo, nos cinco anos de semi-reclusão: apenas enrolação profusa e sem foco, com cara completa de "armação" (que aqui atende pelo nome de "hype", palavra muito expressiva).

A história

A metade final do programa trouxe os dezoito minutos que Martin Scorsese filmou como clip para a canção Bad. Michael Jackson aparece como co-autor do argumento e Quincy Jones como um dos produtores de Bad, que tem créditos e linguagem de curta-metragem, não de videoclip. As primeiras imagens são preto e branco: Michael é Daryl, um dos únicos (o único?) estudantes negros numa sofisticada "prep-school", os colégios internos de elite que preparam para admissão na melhores universidades mais ricos ou mais brilhantes de cada Estado. É o último dia de aula: Daryl sai festejado pelos amigos (um deles diz que sente "orgulho" de Daryl) e pega uma sucessão de trens até chegar em casa. Scorsese usa o trem como elemento expressivo de narrativa da história: fusão após fusão, os trens se sucedem cada vez mais desconfortáveis, cada vez mais pontuados de caras estranhas, indiferentes e hostis, até que Daryl desembarca no seu antigo bairro natal. É um bairro negro e pobre, um gueto da "inner city", da parte mais decadente de uma grande cidade qualquer 
(o clip foi rodado em Nova York, mas tem o cuidado de não caracterizar a vizinhança). Seus antigos amigos o saudam profusamente: cresceram e apareceram, estão "mean", na fronteira da marginalidade, contando bravatas. Trafica-se drogas e vende-se armas abertamente nas ruas - os amigos levam Michael/Daryl para um passeio, e ele sente e mostra repugnância pelo que vê. Os amigos se enfurecem: Daryl não é mais o mesmo, está maricas, afetado, um menino branco, esnobe, como seus colegas. Não é "bad" (mau), o adjetivo supremo para um "brother" do gueto.

Até aqui, Scorsese usou uma linguagem quase de documentário, seca, fria, o oposto do "glamour" videoclip, o preto e branco pesado, os planos longos. Daryl desafia os amigos: quer provar que é "mau". Descem todos para uma estação decrépita do metrô, e Daryl é enviado como isca para um possível assalto. Em vez disso, ele facilita a fuga da vítima, um hispânico tão duro quanto seus futuros assaltantes. Os amigos prensam Daryl: o conflito é iminente. Nesse insante, o clip se transforma, ao mesmo tempo em que cores inundam a tela, hordas de dançarinos emergem das laterais da cena, por sobre as borboletas da estação, e Daryl transforma-se do pacato estudante numa figura agressiva vestida em couro e correntes.

Festa visual

Seguem-se cinco minutos de pura festa visual, um corte drástico em todo o estilo do clip, uma fantasia hiper-realista pela estação do metrô, com uma coreografia furiosa em que Michael mostra não apenas que continua um grande dançarino, mas sobretudo que não é mais o garotinho frágil de Thriller. Finda a canção propriamente dita - em versão maior, remixada - há um momento que é o grande achado do vídeo: Michael/Daryl improvisando, sem acompanhamento, um "rap" em cima da letra de "Bad" - um "rap" menos na escola "hip-hop" e mais no velho esquema chamada-e-resposta de "rhythm and blues".

Coreografia e canto eram a resposta de Daryl ao desafio de seus amigos: o manifesto de anti-maldade, do tipo "Eu não preciso ser assim para ser 'hip'". Scorsese corta dos amigos (que fazem as pazes) para Daryl/Michael: o preto e branco volta, e ele assume de novo a antiga "persona" do estudante vagamente triste. O que realmente se passou na estação de metrô?

Ambíguo e energético, o clip de Bad é extremamente fiel ao disco e a Michael Jackson em sua encarnação 87. Um homem jovem de 29 anos, com uma máscara facial tão estranha que torna-se intrigante, uma agressividade difusa e reprimida que, transformada em canto e dança, explode.

Este Michael Jackson não é mais uma figura inteiramente confortável: há muitos sinais de dúvida e perigo, aqui, e se a "mensagem" continua do mais róseo otimismo - do tipo vamos mudar o mundo - tom de voz, gesto, corpo e rosto denotam outras coisas, uma tristeza profunda, uma angústia confusa misturada a batom, rímel e delineador num rosto ainda mais delicado que em 82.

Os minutos finais do especial foram ocupados, nos Estados Unidos, por outro dos produtos Michael Jackson-87: seu comercial para a Pepsi, patrocinadora da superturnê que ele inicia dia 12 em Tóquio. Michael quase não aparece. A ação se concentra num menino que invade seu camarim, experimenta suas roupas e sonha ser seu ídolo - Michael, propriamente dito, só surge nos segundos finais, debaixo de um chapéu negro, dizendo "Está procurando por mim?"