domingo, 26 de agosto de 2012

Um Encontro com Michael Jackson (Folha de S. Paulo, Agosto 1987)

Folha de São Paulo, 12 de agosto de 1987
Por José Emílio Rondeau

O cantor, que cultiva hábitos surpreendentes, como usar máscara cirúrgica e passear em cadeira de rodas, volta ao centro das atenções com o anúncio de seu novo álbum

Um encontro com Michael Jackson no restaurante Spago, em Los Angeles - nada mal para um sonho. Quando o "chef" alemão Wolfgand Puck idealizou o restaurante Spago, em 1982, tinha em mente uma casa de massas simples e simpática, "daquelas com serragem espalhada pelo chão". Porém, incrustado em área nobre do ultrafashionable Sunset Strip - e equidistante de Hollywood e Beverly Hills - o "simples" Spago tornou-se uma espécie de Olimpo gastronômico, point obrigatório da mui louvada arte do power lunch - discutir negócios de milhões de dólares entre uma e outra garfada de comida light. Celebridades, magnatas e socialites de passagem pela cidade não terão realmente visitado Los Angeles sem pelo menos uma ida ao Spago.

Fazer reservas no Spago, contudo, já é outra história. Se o seu nome não tiver sido publicado recentemente na Variety ou na Billboard... esqueça. A única alternativa é ser convidado de algum habitué. Tive sorte. E sorte dupla: o habitué que me convidou para repartir com ele a mesa durante um brunch de verão vem sendo caçado, literalmente, com a mesma dedicação com que vem se escondendo da mídia em geral. Ele é um recluso convicto, juramentado, uma testemunha de Jeová que se revigora diariamente numa câmara de óxigênio. Mesmo assim, está aqui na minha frente, saboreando meticulosamente uma leve salada preparada por Puck em pessoa. Ele está sem as indefectíveis luvas e veste jeans e camisa de seda branca. Fala baixo. Evita me olhar nos olhos. Ele se chama Michael Jackson.

"O que você quer saber?" Sussurra, fitando o prato. O que eu quero saber? Que tal começarmos por... tudo? "OK", Michael responde, tocando meu antebraço esquerdo com uma mão trêmula e que sua frio. Involuntariamente, deixo cair meu cigarro no chão. Peço licença para ligar o gravador. Ele consente, com um suspiro e um movimento de cabeça quase imperceptível. "Vamos lá".

- Pai, já são quase nove horas. Assim vou perder minha colônia de férias. Vamos lá, pai. Acorda.

É Bernardo, meu filho, me arrancando das únicas oportunidades que terei de ir de graça ao Spago e de entrevistar Michael Jackson: um sonho.

"Nem Insistam"


Na real, Michael Jackson não dá entrevistas. E ponto final. E não sou eu quem diz. É a gravadora dele, a Epic, num press-release que anuncia o primeiro disco do artista em cinco anos, o álbum Bad (ou I'm Bad, ainda não se sabe ao certo) - nas lojas do mundo a partir de 31 deste mês. "Nem insistam," o release alerta os teimosos. O primeiro single do álbum, I Just Can't Stop Loving You, um dueto com a estreante Siedah Garrett (artista do selo Qwest, de Quincy Jones, produtor de Michael), estreou nas rádios americanas no dia 22 de julho, uma quarta-feira, sem clips (o único de que se tem notícia é o da faixa-título, um curta de dezoito minutos dirigido por Martin Scorcese). Sem coletivas. Sem uma palavra sequer de Michael.

Ele só abrirá a boca em 12 de setembro, quando iniciar a turnê de Bad em Tóquio, Japão. Mas só vai cantar: The Way You Make Me Feel, Speed Demon, Man In The Mirror, Smooth Criminal ou algumas das outras músicas novas. Todas as dúvidas que o sobrevoam desde 83, quando deu a derradeira entrevista - a Gerry Hirshey, de Rolling Stone - continuam sem respostas: ele propôs casamento mesmo a Diana Ross e a Elizabeth Taylor (para ser recusado, por ambas, conforme os rumores)? Para que ele quis comprar os restos mortais do legendário Homem Elefante? Valeu a pena passar horas diárias na câmara hiperbárica que mantém em sua mansão em Encino, para prolongar a vida? Quais os planos que tem para o catálogo de músicas dos Beatles que adquiriu por 40 milhões de dólares? Ele vem sendo acusado de exploração voraz das músicas dos Beatles - recentemente, cedeu à Nike os direitos de uso de Revolution, numa campanha agressiva que gerou urros e processos, apesar do aparente consentimento de Yoko Ono.

E há uma série de indagações novas: é verdade que ele gravou todo um álbum, que não agradou Quincy Jones e, por causa disso, foi levado a refazer o disco inteiro? O que era insatisfatório? Dizem que ao ouvir o disco de Prince resolveu mudar tudo. As músicas, a forma de cantar, os músicos convidados (Barbra Streisand, que estava programada, não pinta em Bad; Stevie Wonder, por outro lado, está lá, em Just Good Friends). E o constrangimento que se comenta ter acontecido na festa que Michael deu na mansão em Encino, para lojistas e executivos da Epic, para apresentar Bad? Ao que se diz, não havia um só convidado negro.

"Soft opening"

Por que Michael optou por lançar Bad com I Just Can't Stop Loving You, uma balada fraca que - pelo menos se espera - não parece ser a faixa mais forte do álbum? "Soft opening" (jargão usado para estréias discretas, antes do verdadeiro e bombástico lançamento)? Ou o quê?

Se você já estiver farto de ver pontos de interrogação, trate de se acostumar, pois as perguntas são muitas. Todas sem respostas. Michael fica a maior parte do tempo enclausurado em Encino e quando aparece em público - para uma visita ou outra à Disneylândia, onde prossegue em exibição Captain EO, o clip em terceira dimensão que fez com Francis Ford Coppola e George Lucas, usa, invariavelmente, uma máscara cirúrgica e às vezes uma inacreditável cadeira de rodas, como a que foi mostrado pela revista francesa Le Nouvel Observateur, no mês passado. Que tipo de contaminação ele teme? E qual a razão da cadeira de rodas? Chega de perguntas. Vamos aos fatos. Poucos, mas fatos.

Michael não é um mero superstar arredio. Com quase quarenta milhões de cópias vendidas de Thriller - o álbum de 82 que cruzou todas as barreiras raciais, musicais e mercadológicas e rendeu ao artista sete prêmios Grammy e igual número de compactos no Top Ten da Billboard - Michael é o recheio típico daquilo que costuma-se chamar de fenômeno: um produto pop que domina a mídia de maneira quase ditatorial, um rosto e uma voz que costuram o dia-a-dia de todo o planeta, um artista de quem o mundo fala como se conhecesse desde o berço. No caso de Jackson, isso é quase verdadeiro: afinal, antes de se tornar o Michael Jackson, ele era um dos meninos-prodígio do quinteto Jackson Five, um dos grupos vocais que fizeram a fama e a fortuna da gravadora Motown durante os anos 60. Ele cresceu, maturou, na frente do público. E público ele é desde os cinco anos de idade, um fato raro no pop, apesar de Judy Garland e Mickey Rooney já terem feito algo parecido no cinema.

Total desapontamento

E como fenômeno Michael é tratado: I Just Can't Stop Loving You foi um evento disputadíssimo pelas rádios. Todas lutavam pelo privilégio de ser a primeira a tocar o disco. Algumas - mais afoitas? Mais sortudas? - chegaram a tocar a faixa 24 horas antes do lançamento planejado, como a Power 102, de Los Angeles. A Epic, nada satisfeita com a vitória das rádios sobre o cronograma rígido do departamento de marketing da gravadora, moveu processo contra as emissoas. A crítica encomendou agulhas novas e um sortimento polpudo de cotonetes para receber o novo disco de Michael Jackson apenas para demonstrar total desapontamento três minutos mais tarde. "Foi por isso que esperamos cinco anos" tornou-se a frase mais lida nos jornais. E toda uma cantilena de considerações a respeito do resto do álbum começou a ser declamada: "O disco é ruim, mesmo"; "ele está blefando, apenas"; "o melhor está por vir."

Acho necessário dizer que as expectativas levantadas por Thriller - as de pop-funk transcultural, "state-of-the-art", impecável e de uma proposta visual em clip sucessivamente revolucionária e magnética - ainda estão para ser preenchidas. Através de um julgamento feito exclusivamente a partir do primeiro compacto de 87, Michael Jackson está escondendo o jogo ou desaprendeu as regras. Bom, não deve ser prazeiroso dormir e acordar todos os 365 dias do ano sabendo que seu nome está no Livro Guiness de Records como o artista que mais vendeu discos de todos os tempos. É pressão demais. Como um artista conseguirá trabalhar assim? Por outro lado, já que Michael alegadamente não lê jornais e vive envolto em seu próprio mundo pessoal, talvez as pressões não o afetem tanto assim. Se é que chegam a afetá-lo.

Por que, então, satisfazer a sede de todo um público cativo com uma canção tão morna, tão média? Mais uma pergunta que Michael Jackson não responderá.