quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Videoclipe ao Vivo (Veja, Outubro 1993)

Revista Veja, 6 de outubro de 1993.
Por Virginia Leite, em Tenerife.

Com pirotecnia e muito profissionalismo, Michael Jackson surpreende do início ao fim

Dez e quinze da noite de domingo 26 em Tenerife, nas Ilhas Canárias, Espanha. Os acordes de Carmina Burana, a peça clássica de Carl Orff, anunciam para 50.000 pessoas comprimidas no Porto de Santa Cruz que o espetáculo vai começar. Saudado por uma tempestade de fogos de artifício, Michael Jackson aparece de repente, dando um salto de mais de 1 metro de altura e caindo sobre o palco vazio. Ouve-se um "Oh!" de uma platéia maravilhada. Parece mágica, e é mesmo. O truque foi concebido nos escritórios de um grande especialista na matéria, o americano David Copperfield, que assina os efeitos especiais do espetáculo. Distraídos pelos fogos de artifício e pelos jogos de luz, os espectadores não enxergam os movimentos de um pequeno alçapão montado embaixo do palco, de onde Michael Jackson é projetado como se fosse uma fatia de pão de fôrma saindo de uma torradeira elétrica.


A aparição triunfal do astro é uma amostra do que vai ocorrer nas duas horas seguintes. Dangerous reúne as canções de maior sucesso da carreira de Michael e tem uma coreografia eletrizante, mas o que faz dele um espetáculo inesquecível é a parafernália eletrônica, os efeitos de luz, os lasers e os vídeos. Esses ingredientes são essenciais para o sucesso do show, que, no ano passado, viajou pelos Estados Unidos e pela Europa e agora excursiona pela Ásia e América do Sul. Desde 1992 Michael Jackson repete o mesmo show em todos os lugares. Suas apresentações no Brasil estão programadas para ser milimetricamente iguais às de Tenerife, Londres, Moscou ou Taipé.

A produção de Dangerous é uma extravagância à altura das esquisitices do ídolo. O palco tem 77 metros de largura por 28 de profundidade e a altura de um prédio de seis andares. Ele começa a ser montado sete dias antes do show, demora cinco para ficar pronto e envolve o trabalho de aproximadamente 100 homens. No Brasil, a empresa britânica Edwin Shirley Staging, responsável pelo palco, vai apenas supervisionar as obras, mas não usará suas 125 toneladas de aço na montagem porque o transporte ficaria muito caro. Uma firma brasileira será encarregada da estrutura metálica do palco onde Michael dará piruetas e mostrará que também é um excelente bailarino.

AR ABOBALHADO - A equipe de produção, uma intrépida trupe de 147 homens, chega dois dias antes do espetáculo. São produtores, coordenadores, gerentes de palco, técnicos e engenheiros de luz, som e laser, que dispõem de um dia e meio para instalar 440 toneladas de equipamento transportadas por dois aviões russos de carga Antonov, os maiores do mundo. A equipe contrata mão-de-obra local - cerca de 100 pessoas - para auxiliá-la na produção. Todo esse aparato sem o carisma, a voz e o requebro do superastro não lotaria estádios de futebol ao redor do mundo. Mas com certeza ele não conseguiria arrastar multidões se estivesse apresentando-se num palco minúsculo, sentado num banquinho com um microfone na mão.


Michael Jackson é um exímio produtor de automistérios e mantém sua vida privada em segredo, o que faz de seus shows a grande oportunidade que os fãs têm para chegar mais perto. O sonho da platéia mais fanática é conquistar seus quinze segundos de proximidade com o cantor magricela, sexo e cor indefinidos, madeixas caindo sobre o rosto. A cada show uma candidata tira a sorte grande. Quando canta a balada romântica She's Out of My Life, Michael Jackson chama uma espectadora para o palco e os dois dançam juntinhos. A bancária alemã Uta Arnold, de 18 anos, foi uma das primeiras a chegar ao cais de Tenerife para garantir um lugar perto do palco na esperança de ser a escolhida. "Eu o amo", garante a bancária, ar abobalhado. Uta viajou mais de 2 000 quilômetris para ver o cantor a menos de 5 metros de distância - atrás de uma grade de proteção e de uma equipe de leões-de-chácara. Na esperança de um contato direto, chegou a dormir na porta do hotel em que Michael Jackson estava hospedado, um cinco estrelas onde reservou uma suíte com 150 metros quadrados, piscina particular e diária de 600 dólares. Em vão.

A grande premiada, em Tenerife, foi a inglesa Denise Pfeiffer, de 23 anos, que segue "Michael", como ela diz, com orgulhosa intimidade, pelo mundo todo e já assistiu a 76 shows em cinco anos. Pfeiffer é tão assídua que acabou reconhecida por assessores do cantor e convidada para tirar uma foto atrás do palco. Secretária, já investiu 10 000 dólares - o preço de um automóvel de segunda linha - nas suas andanças. Surpreso com tamanha fidelidade, Michael Jackson se fez de modesto e perguntou se ela não estava enjoada. Ouviu uma jura eterna: "Eu nunca poderia ficar cansada de você, Michael". Até o ídolo fez cara de espanto. Trata-se, afinal, de um profissional de seu próprio sucesso.

"Ele é um perfeccionista", observa o assessor de imprensa Bob Jones, que o acompanha há duas décadas. No show, Michael faz uma homenagem ao passado interpretando canções antigas como I'll Be There. Em alguns momentos, enquanto canta o Medley de la Tamla Motown, os dois telões de 12 metros por 6 mostram imagens dele e dos irmãos com cabelo black power na época dos Jackson Five. São telas de cristal líquido, uma espécie de televisão gigante de alta definição em que a imagem é controlada por computadores. Através delas, o público acompanha clipes e tem a chance de descobrir detalhes do espetáculo invisíveis a olho nu - são imagens captadas por três câmeras, instaladas no palco e na platéia. Uma diretora de vídeo, que fica numa salinha atrás do palco, controla o que é exibido e grava um vídeo que é entregue ao cantor no final de cada apresentação. Como uma pessoa que está sempre se submetendo ao mesmo teste, Michael Jackson assiste a todos os espetáculos à procura de erros.

"Quando alguma coisa não sai do jeito que ele gosta, manda um recado para quem errou corrigir-se", revela Jones. A mania de perfeição o leva a exigir uma precisão quase matemática dos profissionais que trabalham com ele e a controlar o tempo de duração das músicas por computador. Isso garante ao público o conforto de assistir a um espetáculo que começa na hora marcada. Em Tenerife, o atraso, se é que pode ser chamado assim, foi de apenas quinze minutos. Mas também dá certa artificialidade ao show. Dangerous já foi criticado por parecer uma sucessão de videoclipes ao vivo. É uma observação acertada, mesmo quando se reconhece que nenhum outro artista já conseguiu estrelar clipes tão imaginativos, capazes de exibi-lo ora num beco escuro de Nova York, ora requebrando no Egito dos faraós. "Michael pediu que eu fizesse roupas parecidas com as dos vídeos", conta o estilista Michael Bush, que também o ajuda a se trocar durante o show, muitas vezes no próprio palco. "Os desenhos são os mesmos, apenas mais chamativos."

TOM FAMILIAR - Ao cantar Thriller, Michael Jackson promove a coroação do estilo espetáculo-clipe. Num único número, ele reúne os grandes efeitos de truques de palco em disponibilidade no mercado. Lasers coloridos riscam o palco e o céu fazendo desenhos geométricos, as luzes se movem banhando o cantor, que se transforma num lobisomem, e os dançarinos vestidos de zumbis. Na torre de mixagem, alguns metros à frente do palco, o diretor de iluminação Merle Maclaine opera os três tipos diferentes de luzes: as convencionais, que apenas mudam de cor; as vary lights, que se movem; e as telescans, mais brilhantes e potentes, que têm um espelho que se move e reflete a luz. Também fica na torre o operador dos lasers, Scott Cunningham, que criou os desenhos de formas geométricas, ondas e feixe de raios para a turnê. Scott opera três lasers, dois vermelhos e um verde e azul.

De 140 caixas de som, saem os primeiros acordes de Black or White, outro sucesso estrondoso. Os espectadores assistem ao clipe com o miniastro de Hollywood Macaulay Culkin infernizando a vida do pai com músicas no máximo volume. Para o público, o som de 300 000 watts de potência é controlado da torre de mixagem. Os músicos têm um sistema de som de retorno exclusivo, comandado de uma sala à direita do palco. A energia necessária para suprir todos esses gastos com luz, som e lasers vem de quatro geradores que poderiam fornecer eletricidade para uma cidade de até 40 000 habitantes.

Pelo menos em Tenerife, as acusações de que Michael Jackson teria abusado sexualmente do menino Jordan Chandler, de 13 anos, não diminuíram o tom familiar do espetáculo. Concebido antes do escândalo, Dangerous se destina a oferecer atrações para agradar a pais e filhos: 301 explosões pirotécnicas, mágicas que fazem Michael aparecer e desaparecer e se inclinar em ângulos impossíveis, banho de luzes e raios laser. Quem resiste? Quem não tem medo de se arrepender de não ter ido? O diretor de hotel Manolo Tarife levou a esposa, Tina, os filhos Ancor, 12 anos, e Yurena, 10, as sobrinhas Guaciara, 16, e Laura, 4, e a mãe delas, Lita. "A família toda é fã dele", diz Manolo. Um de seus filhos passa os dias tentando imitar as piruetas de Michael Jackson, e a sobrinha Guaciara não tira seus discos da vitrola. E as acusações de abuso sexual? "São mentiras", indigna-se Lita. "O pai do menino está querendo tirar dinheiro de Michael."

PERIGOSO DEMAIS - O próprio Michael Jackson tem feito o possível para dar razão a fãs como ela. Faz questão de um toque infantil na decoração do seu camarim - em Tenerife, ele era enfeitado com balões de gás do Mickey, de unicórnios e cachorrinhos -, recebe convidados mirins antes do show e visita zoológicos, orfanatos e hospitais. Muitas dessas aparições relâmpagos nada têm de atividade beneficente, a não ser para seu próprio bolso. Quando desembarca num local e descobre que a sobra de ingressos é grande, Michael Jackson arruma um jeito de fazer um passeio de surpresa para causar sensação e atrair a curiosidade dos menos interessados. Em Jerusalém, esteve no Muro das Lamentações. Em Moscou, andou pela Praça Vermelha. Em Cingapura, confraternizou com soldados do Exército. "É tiro e queda", observa uma produtora. "Até a hora do show, os últimos ingressos já foram vendidos."


O médico particular, David Forecast, o acompanha por toda parte. A desidratação que teve em Bangcoc, primeira apresentação da segunda etapa da turnê, já é coisa do passado. Michael fez outros doze shows depois de Bangcoc e não teve mais nada. Forecast prepara uma solução glicosada para ser tomada durante o show e o examina após cada apresentação para se certificar de que está em forma. O médico recomendou que Michael não fizesse dois shows seguidos para evitar o desgaste físico. "Ele perde 3 a 4 quilos nas duas horas em cena. Precisa de tempo para se recuperar", explica.

O final do show de Tenerife foi com a melosa Heal The World, canção que leva o nome da fundação para crianças carentes que Michael Jackson mantém. Nas telas, imagens de crianças de todo o mundo e uma mensagem de paz e solidariedade. No palco, vinte meninos e meninas trajando roupas típicas das Canárias ficam de mãos dadas ao redor de um globo terrestre inflável - em cada cidade por onde passa, Michael convida de vinte a 25 crianças para participar do espetáculo. O final é piegas demais para um show tão arrojado. Mas não era para ser assim. Na primeira etapa da turnê, o final era tão surpreendente como o início. Michael Jackson vestia uma jaqueta e ao som de Rocket Man saía voando por cima do palco e sua imagem aparecia nos telões rumo à Lua. O dublê do megastar se machucou e o truque teve de ser cortado. Era perigoso demais.