Folha de São Paulo, 18 de julho de 1984
Por Pepe Escobar"Sou mais popular do que Cristo", desejou John Lennon nos anos 1960, sem imaginar que Michael Jackson realizaria o sonho.
Reinava a letargia no céu. Nenhum hit memorável nas FM's do Paraíso. Tédio geral. Deus, cansado, de bengala, já tinha pedido: Give me a break (em inglês, a língua universal). Não lhe deram nem break, nem soul, nem rock: deram Reagan, Maluf, guerra nuclear. Era demais para a sua cabeça. Pediu férias e foi descansar embaixo de uma palmeira no Jardim do Éden.
Jesus Cristo vivia apático. De vez em quando alugava "Guerra nas Estrelas" no videoclube Olímpia. Um dia teve uma idéia brilhante: "Vou voltar pra Terra. Vou me encarnar em um garoto do povo e botar todo mundo pra dançar. Talvez assim eles me entendam. Além disso, lá embaixo o negócio está fervendo".
JC escolheu direitinho. Examinou milhões de candidatos. Ficou com um neguinho de Indiana, magro, tímido, corpo de boneco, cheio de swing, trabalhando duro desde os 5 anos de idade. JC foi bater um papo com outras divindades para armar sua "reentrée". Recebeu sugestões de Afrodite, Shiva, Zeus, Osíris. Lúcifer tomou uma ponte aérea e foi lhe dar umas lições de soul e funk. JC botou os pezinhos voadores de Mercúrio - o mensageiro dos deuses -, cortou a barba hippie, trocou a bata branca por uma roupinha brilhante (sugestão luciferiana), molhou o cabelo, passou a maquiagem e caiu na dança.
Chegou arrasando. Bastou gravar um LP e três videos. Deu no que deu. Em um ano e meio, fez o que ninguém conseguiu em dois mil anos. Manteve, é claro, algumas características básicas. Um fenômeno, um exemplo para a humanidade. Mas adaptou-se aos novos tempos.
Afinal, era um longo caminho do Sermão da Montanha à era do videoclipe. Sua nova imagem foi construída cuidadosamente por especialistas de marketing do Paraíso. Estava forjado como um símbolo da cultura dos anos 80, violentos, dessacralizados, pré-apocalípticos. O ídolo para todos. Portanto, nada de transgressão. Bom moço, ambíguo, até mesmo esquizoparanóico. Nada de sexualidade expressa. Um garoto tímido. Um ícone de olhar etéreo, aos 25 anos servindo criteriosamente uma complexa indústria. Mas por pouco tempo, segundo ele. No plano de JC, o grande passo seria converter, através de sua arte, uma enorme massa pagã para a fé no amor, na compreensão e nos valores mais altos da raça humana. Não era possível que não o entendessem desta vez. Todos os progressos da era tecnotrônica funcionavam a seu favor.
Sanidade e Desenhos
Foi entendido na hora. A hóstia de vinil vendeu 35 milhões de cópias. Através dos três videos, gerou milhares de clones e seguidores em todos os países do mundo. Da Praça São Pedro ao Cassino do Chacrinha. Ganhava 2,10 dólares por disco. Vendia mais disco do que hambúrger. Ganhou todos os prêmios, todos os elogios, todos os adjetivos, todas as capas de revista de todas as revistas do planeta. Alimentou uma gigantesca indústrica paralela de mitos, modas e mexericos. E quando contemplou o novo império, de sua disneylândia mansão na ensolarada Califórnia, rodeado de ursinhos de pelúcia, manequins de gesso e fliperamas multicoloridos, resolveu comemorar a vitória.
JC era um mito outra vez. Mas tinha pago um preço por esse pacto faustiano. Para presevar sua sanidade, só mesmo vivendo uma existência reclusa. Deambulava por outro mundo - o mundo dos desenhos animados, como no episódio daquele filme, "Twilight Zone". Steven, o garotão que tinha sintetizado a história do cinema ocidental em três ou quatro filmes, o considerou o último inocente sobre a terra. JC, agora Michael Jackson, tinha sintetizado a história da música negra em um disco. Mas a pressão da mesquinharia humana era demais. Só restava um recuo tático, converter-se em cartoon.
Voltou a atacar. Imaginou uma bombástica excursão por 42 cidades, "Victory", onde pregaria ao vivo, pela primeira vez, em grande escala, o seu ritual catártico. Não bastava ser o mais popular cantor negro de todos os tempos. Ou o mais popular humano desde JC (o que era um contra-senso). Tinha que aproveitar aquele talento ofertado pelo próprio Criador (lá em cima, Ele aplaudiu e se deliciava ao som de "Billie Jean"). Tinha que aproveitar o estudo minucioso dos rebolados do eterno James Brown. Tinha que aproveitar a força de cem milhões de dólares, com acesso ao melhor do melhor. O Império Celestial contra-atacava. O caminho da vitória terminaria nas estrelas, no centro de uma galáxia.
Espetacularização
Foi esse o tema da capa do novo disco - um primor do kitsch espacial -, onde dava uma mãozinha a seus irmãos terrenos, Jermaine, Tito, Jackie, Randy e Marlon. Mas foi JC/Michael quem coordenou tudo. O disco foi lançado nos EUA, a Terra Santa do fim do século, e em todo o mundo (inclusive no Brasil, em 18 de julho de 84). A caravana começou a andar, depois de oito meses de infinitos problemas de organização (a "tolice nacional do ano", segundo um tablóide chique de N. York). 30 dólares o ingresso por fiel/por missa, com duas horas e meia de duração e efeitos mirabolantes. 240 mil fiéis nos primeiros seis concertos. Dois milhões de LPs vendidos em três semanas, só nos EUA. 375 toneladas de equipamentos - incluindo um palco de oito andares, 120 caixas de som, sete computadores, cinco elevadores -, itinerando pelo país em 24 supercaminhões. Previsão, apenas de venda de ingressos, próxima dos 60 milhões de dólares (comparada aos 39 milhões de David Bowie em 83 e 35 milhões dos Rolling Stones em 81), fora os extras de momento - camisetas, pôsteres, fantasias de Michael Jackson - e futuros - álbum ao vivo, filme. Na mídia internacional, o espanto. O maior, o maior, o maior. O triunfo absoluto da especularização. Michael já avisara: toda a sua participação na renda seria doada a instituições de caridade. Depois, só mesmo a canonização.
Se dependesse do disco, o impacto seria mínimo. Um festival intergalático de sons densos - superposições de computadores Fairlight, metais sintetizados, baterias eletrônicas, solos de heavy metal -, uma superprodução do conglomerado californiano Toto que afoga até mesmo uma simples estrutura de Motown shuffle como "Wait". Michael aparece de vez em quando, mais nos backing vocals, mas quando sola, chora e pára no meio da músical; é "Be Not Always", verdadeira Ave Maria dos sofredores dos anos 80 (suicidas, afastem-se). O único hit provável termina sendo "State Of Shock", onde Michael alia-se ao ex-braço direito de Satanás Mick Jagger: é uma espécie de "Beat It" lenta, com refrão heavy, gritos standard, chavões de letras negras ("mine" rima com "fine", "good" rima com "should", "talk" rima com "walk") e um "na na na" à la Stevie Wonder. E é só. Pra que mais?
A turnê foi um sucesso absoluto. Provavelmente a última vez que JC/Michael saiu em excursão. Seu prestígio chegou aos céus. Apesar da mancada de gravar comerciais para a Pepsi-Cola com sua própria música "Billie Jean'". Talvez JC/Michael estivesse embriagado com tanto poder.
Ninguém sabe, porque ninguém sabe o que se passa nesse frágil coração. JC/Michael virou o Little Big Brother do planeta Terra, em todas as telas, em todas as ruas, com milhões de clones encantados o adorando e imitando em todas as partes do planeta. Propuseram a Steven, o pai de "E.T.", para o FMI. Propuseram Michael para a ONU. Era a definitiva vitória da jacksonmania. No dia seguinte, animado, Deus desceu do Céu e assinou contrato com a CBS.
Sanidade e Desenhos
Foi entendido na hora. A hóstia de vinil vendeu 35 milhões de cópias. Através dos três videos, gerou milhares de clones e seguidores em todos os países do mundo. Da Praça São Pedro ao Cassino do Chacrinha. Ganhava 2,10 dólares por disco. Vendia mais disco do que hambúrger. Ganhou todos os prêmios, todos os elogios, todos os adjetivos, todas as capas de revista de todas as revistas do planeta. Alimentou uma gigantesca indústrica paralela de mitos, modas e mexericos. E quando contemplou o novo império, de sua disneylândia mansão na ensolarada Califórnia, rodeado de ursinhos de pelúcia, manequins de gesso e fliperamas multicoloridos, resolveu comemorar a vitória.
JC era um mito outra vez. Mas tinha pago um preço por esse pacto faustiano. Para presevar sua sanidade, só mesmo vivendo uma existência reclusa. Deambulava por outro mundo - o mundo dos desenhos animados, como no episódio daquele filme, "Twilight Zone". Steven, o garotão que tinha sintetizado a história do cinema ocidental em três ou quatro filmes, o considerou o último inocente sobre a terra. JC, agora Michael Jackson, tinha sintetizado a história da música negra em um disco. Mas a pressão da mesquinharia humana era demais. Só restava um recuo tático, converter-se em cartoon.
Voltou a atacar. Imaginou uma bombástica excursão por 42 cidades, "Victory", onde pregaria ao vivo, pela primeira vez, em grande escala, o seu ritual catártico. Não bastava ser o mais popular cantor negro de todos os tempos. Ou o mais popular humano desde JC (o que era um contra-senso). Tinha que aproveitar aquele talento ofertado pelo próprio Criador (lá em cima, Ele aplaudiu e se deliciava ao som de "Billie Jean"). Tinha que aproveitar o estudo minucioso dos rebolados do eterno James Brown. Tinha que aproveitar a força de cem milhões de dólares, com acesso ao melhor do melhor. O Império Celestial contra-atacava. O caminho da vitória terminaria nas estrelas, no centro de uma galáxia.
Espetacularização
Foi esse o tema da capa do novo disco - um primor do kitsch espacial -, onde dava uma mãozinha a seus irmãos terrenos, Jermaine, Tito, Jackie, Randy e Marlon. Mas foi JC/Michael quem coordenou tudo. O disco foi lançado nos EUA, a Terra Santa do fim do século, e em todo o mundo (inclusive no Brasil, em 18 de julho de 84). A caravana começou a andar, depois de oito meses de infinitos problemas de organização (a "tolice nacional do ano", segundo um tablóide chique de N. York). 30 dólares o ingresso por fiel/por missa, com duas horas e meia de duração e efeitos mirabolantes. 240 mil fiéis nos primeiros seis concertos. Dois milhões de LPs vendidos em três semanas, só nos EUA. 375 toneladas de equipamentos - incluindo um palco de oito andares, 120 caixas de som, sete computadores, cinco elevadores -, itinerando pelo país em 24 supercaminhões. Previsão, apenas de venda de ingressos, próxima dos 60 milhões de dólares (comparada aos 39 milhões de David Bowie em 83 e 35 milhões dos Rolling Stones em 81), fora os extras de momento - camisetas, pôsteres, fantasias de Michael Jackson - e futuros - álbum ao vivo, filme. Na mídia internacional, o espanto. O maior, o maior, o maior. O triunfo absoluto da especularização. Michael já avisara: toda a sua participação na renda seria doada a instituições de caridade. Depois, só mesmo a canonização.
Se dependesse do disco, o impacto seria mínimo. Um festival intergalático de sons densos - superposições de computadores Fairlight, metais sintetizados, baterias eletrônicas, solos de heavy metal -, uma superprodução do conglomerado californiano Toto que afoga até mesmo uma simples estrutura de Motown shuffle como "Wait". Michael aparece de vez em quando, mais nos backing vocals, mas quando sola, chora e pára no meio da músical; é "Be Not Always", verdadeira Ave Maria dos sofredores dos anos 80 (suicidas, afastem-se). O único hit provável termina sendo "State Of Shock", onde Michael alia-se ao ex-braço direito de Satanás Mick Jagger: é uma espécie de "Beat It" lenta, com refrão heavy, gritos standard, chavões de letras negras ("mine" rima com "fine", "good" rima com "should", "talk" rima com "walk") e um "na na na" à la Stevie Wonder. E é só. Pra que mais?
A turnê foi um sucesso absoluto. Provavelmente a última vez que JC/Michael saiu em excursão. Seu prestígio chegou aos céus. Apesar da mancada de gravar comerciais para a Pepsi-Cola com sua própria música "Billie Jean'". Talvez JC/Michael estivesse embriagado com tanto poder.
Ninguém sabe, porque ninguém sabe o que se passa nesse frágil coração. JC/Michael virou o Little Big Brother do planeta Terra, em todas as telas, em todas as ruas, com milhões de clones encantados o adorando e imitando em todas as partes do planeta. Propuseram a Steven, o pai de "E.T.", para o FMI. Propuseram Michael para a ONU. Era a definitiva vitória da jacksonmania. No dia seguinte, animado, Deus desceu do Céu e assinou contrato com a CBS.