segunda-feira, 25 de junho de 2012

Um Franz Liszt da era moderna (Estadão, Junho 2010)

Estadão, 19 de junho de 2010
Por Arthur Moreira Lima

Como Michael Jackson, o melhor pianista de todos os tempos revolucionou o concerto-espetáculo e inventou o recital-solo

Segundo Millôr Fernandes, a verdade é o mito, ou o mito se torna verdade. É justamente o mito que vai contar a história, projetando-a no futuro. Michael Jackson, um fenômeno sem precedentes, morrendo há um ano ainda em pleno vigor da sua capacidade artística, garantiu um lugar perene na galeria dos mitos.

Não sou entendido em música pop, o que deve até ajudar, no sentido de poder avaliar sem paixões, portanto, mais objetivamente, uma vez que minha profissão de músico clássico (ou erudito, como querem alguns) lida sobretudo com a estética. Sob esse aspecto, as performances e espetáculos de Michael foram simplesmente espetaculares, empolgantes, deslumbrantes, um talento genial com uma equipe formidável, sabendo usar toda a tecnologia a seu favor.

Lembrando a música do Romantismo do século 19, diríamos que o primeiro 'artista pop' daquela época foi Franz Liszt, até hoje considerado o maior pianista de todos os tempos. Foi criança prodígio, assim como Michael. Também compositor e maestro, inquieto, inovador e um dos que prenunciaram, prepararam e apoiaram a música do futuro, como se dizia na época. Richard Wagner, protegido por Liszt, cujo prestígio era enorme, foi o grande inovador, a ponte entre o Romantismo e o que viria depois, Impressionismo, Dodecafonismo e outros ismos do final do século 19 e início do 20.

Liszt revolucionou o concerto-espetáculo, inventou o recital solo e deu aos sisudos concertos e recitais um pique de show. Da mesma maneira, Michael Jackson provocou uma revolução nos shows pop sob todos os aspectos. A performance tomou uma importância até então nunca sonhada. No caso, é o 'espetáculo total', este também, mutatis mutandis, idealizado por Wagner em suas óperas. As coreografias de Jackson, imaginativas e tecnicamente irrepreensíveis, com profusão de tipos variados e estranhos, completam com os recursos de luz, som e demais parafernálias, o sonhado 'espetáculo total'.

Na parte 'dança', Michael é um continuador de Fred Astaire e Gene Kelly. Claro, os tempos são outros. Foram levados para o palco os efeitos cinematográficos e realizados truques até então impensáveis. A equipe foi fundamental para alcançar o sucesso, proporcionado pelos resultados artísticos que puderam aproveitar o estouro dos clipes no mercado.

Michael Jackson foi, como Franz Liszt, sobretudo, um filho da sua época. Partiu deixando saudade junto a um trabalho consistente, marcante, típico do período mais rápido e inquieto da história da humanidade.



Arthur Moreira Lima é pianista